Só em filme americano o cidadão sai pela rua gritando: -Táxi!!! Táxi!!! E acha. Mas a minha vontade era essa. Sair igual doido berrando por um táxi que me tirasse daquela espelunca andina. Pra piorar a situação o trem de volta só partiria no dia seguinte pela manhã. Se tudo corresse bem.
A altitude já havia cobrado seu preço: mal estar, fôlego ainda pior do que o normal (sim, ofegante leitor, é possível) e uma caganeira digna de um épico de Cecil B. DeMille - culpa do almoço de cortesia incluído num passeio anterior. Ainda assim havíamos chegado em razoável estado físico e mental na aprazível cidade de Aguas Calientes. (Aprazível? Cidade? Aquilo não passa de um camelódromo que, para ser promovido a um reles povoado, ainda vai ter que melhorar muito.)
Caso eu tivesse seguido minhas naturais desconfianças, teria me informado melhor sobre a “cidade”, o tempo de permanência e as condições do tão iluminado passeio. Ansiedade pelas férias, falta de paciência para ficar escutando infindáveis dicas sem a menor importância e excesso de confiança na agência de turismo são desculpas improcedentes. Quem sonha em abraçar a carreira de turista profissional, não pode se dar a essas fraquezas.
Resultado: lá estava eu, às seis horas da madrugada, instalado num trem tal e qual o da Estrada de Ferro Vitória a Minas com a diferença de ser falado em castelhano. Sem legendas.
O “Vitória a Minas” segue desvendando paisagens até então, por mim, só vislumbradas nos livros de história e geografia - capítulo América do Sul. O que não deixa de ser uma sensação interessante. Minha adorável companheira está se preparando para entrar em transe profundo. Esperta escapatória para o mau cheiro reinante e também uma prévia do que os próximos dias me reservavam.
-Te contei que a Cristininha teve uma revelação em Machu Picchu?
-Três vezes. Quatro com essa.
-Pois é. Não vejo a hora de incorporar essas energias.
-Pe-la-môr-dê-Deus, numa hora dessas, incorporações energéticas são admitidas somente para fins de contenção intestinal.
-Ai, de manhã você é intragável.
-Não sou não. Intragável é esse chá.
-Nós vamos fazer uma energização lá em cima, né? A Cristininha falou que o lugar é mágico.
-Ô, vida! Será que dá pra fumar na janela?
-Não fuma não... Olha o aviso.
-Que aviso?
-Ali, ó. No cartaz.
-Aquilo é anúncio de vacina pra febre amarela!
-Tá. Mas não pode fumar aqui dentro. Quer apostar?
-Não. Saco.
No vagão, as pessoas parecem compartilhar do mesmo objetivo. Todo mundo sabe que o chá peruano vendido em supermercados não dá barato, mas os outros brasileiros ali presentes (Maioria de paulistas - como viajam os paulistas! Parece japonês...) ingerem e mascam quantidades industriais do produto local e ostentam aquele mal disfarçado ar de expectativa juvenil: “Olha como sou mais zen do que você!”.
A paisagem assume as características de todas as paisagens vistas pela janela de um trem: plantações, casas, animais, seres humanos, tudo parece parado no tempo. Incluindo o trem, parado há já uns vinte minutos. Procuro por informação e escuto algo próximo do seguinte: -“Por supuesto que no tenemos una situación de descarrillo y en poco tiempo lograremos empezar el camino una vez que nuestros servicios son tan cojonudos pero mira en lo vulgo no existe convicción el gobierno es una vergüenza y obstnfgsss...”
Pelo menos me é permitido descer e fumar um abençoado cigarrinho em paz.
Da estação até o ônibus que nos transportará aos píncaros do esoterismo sul-americano é forçoso atravessar um corredor com, por baixo, umas trinta e oito barraquinhas vendendo bijuterias, flautinhas, penduricalhos, ponchos, etc. Com olhos de águia, minha arguta companheira examina todas as ofertas. Literalmente, todas. Acha tudo muito comum, não compra nada e somos brindados com os piores lugares no ônibus.
Depois de mais alguns quilômetros subindo em ziguezague e de pagas todas as taxas, começa a, para mim torturante, para ela maravilhosa, escalada rumo ao topo das energias concentradas. O guia até que é simpático, mas passados quinze minutos numa trilha projetada para lhamas... Do Sucesso!, (perdão, foi irresistível) tivera eu fôlego e alegremente extirparia sua jugular cantarolando El Condor Pasa. (Bará-rararará-rarararááá... Ba-rarááá... Ba-rara-rarááá...)
Elevando mais ainda o meu desespero, minha translúcida companheira propõe que abandonemos o grupo e rumemos para o alto da montanha onde se desenha uma cabaninha de pedra já bem gasta de tanto ser sensibilizada e fotografada.
-Ah, anda, lá é que é o lugar, anda, respira, vamos, Uh! Uh! Puxa, você está sentindo a vibração?
-Estou. Na verdade sinto uma vibração ancestral. Todo o meu ser, nesse exato instante, está vibrando e me empurrando em direção a uma cerveja gelada.
-Aaah, nããão! Você não vai estragar esse passeio maravilhoso!
-Tá bom, tá bom. Claro que não. Imagina.
Muitos minutos depois, suando, estirado numa grama rala e fria, tossindo e amaldiçoando não só Manko Kapaq como todos os seus descendentes, consigo recuperar o mínimo de oxigênio exigido para me manter vivo.
-Esse lugar é mesmo especial. A espiritualid...
-Péralá! (Minha paciência, ainda que consideravelmente maior do que meu fôlego, se esgota.) Qual espiritualidade? O último espírito que se aventurou por aqui desistiu depois de contemplar esses milhares de turistas o dia inteiro abelhudando tudo, fazendo xixi atrás das pedras e entrando em alfa pra tentar fazer contato. Não dá. Congestiona o astral. Por mais bem disposto e iluminado que seja, não há espírito que agüente!
-Cara, você não tem jeito mesmo.
No trem de volta, uma cutucada carinhosa:
-Cê tá acordado?
-Hein?
-Você estava sorrindo. Tava sonhando com quê?
-Nada, não sei.
Mentira. Eu estava sonhando com o nível do mar e o cassino do Sheraton de Lima.
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