segunda-feira, 27 de julho de 2009

FLASH

Mirtes era uma adorável anta empacotada numa linda e libidinosa embalagem, o que garantia sua sobrevivência social. Ainda por cima errava regularmente a colocação dos erres: iorgute, bicabornato, por aí. Mas era alegre, bem humorada e tinha um coração maior, muito maior do que sua ignorância. Pensando bem, é maldade dizer ignorância. Mais apropriado seria definir como preguiça aliada à nossa moderna e espetacular combinação de educação e cultura: televisão, revistas de fofocas e cadernos femininos dominicais.

-“Ah, você entendeu, né?” Era como ela respondia aos poucos que reclamavam quando o incômodo das incongruências enunciadas suplantava o enlevo visual apresentado. Não dava a mínima importância a essas coisinhas. Estava sempre com a mente ocupada por questões de real relevância como a cor do esmalte que iria combinar com a blusinha que acabara de comprar (12% de desconto!). E, para felicidade geral, acertava sempre no esmalte, na blusinha, no perfume e em toda a gama de requisitos que envolvem a sedução, a provocação e todas as demais variáveis possíveis e gostosamente imagináveis.


Vicente era um inconseqüente aprisionado na cadeia familiar. Esperto e inteligente, desde os vinte e poucos anos já comandava os negócios da família o que envolvia atividades no comércio, pequenos investimentos, pequenas negociatas entre pretensos amigos, enfim, um emaranhado de não tão pequenas coisas que se aglutinavam em considerável fortuna. Por falta de vocações próximas (os irmãos, ao perceberem as habilidades de Vicente, confortavelmente se recolheram ao simples desfrute da boa vida) ele centralizava as decisões e, ao contrário do que acontece normalmente, o patrimônio da família aumentava. A inconseqüência - ou permanente adolescência - era mantida sob atento autocontrole. O trabalho era prioridade, guardadas as proporções que a idade e a intensa vida social permitiam.
Conheceram-se num seminário de negócios onde ela fazia um bico de recepcionista. Vicente ficou espantado com a reação dela após a cantada de praxe:
-Tudo bem, mas caminha hoje, se tiver, é só pra mimir.
-Por que, está com algum problema?
-Eu, nenhum. Você é que deve ter problema: como é que um sujeito tão bonito e charmoso fala para uma moça tão bonita e charmosa como eu, “E aí, gata, quer jantar e algo mais?” e, pra piorar, com essa cara mais burocrática...?
À Mirtes podiam faltar diversos requisitos, mas praticidade e presença de espírito certamente sobravam. Vicente ficou olhando pensativo para aquela mulher que normalmente significaria apenas mais uma marca na guarda da cama e constatou que sua vida estava uma bela bosta. Sim porque, afinal, ele era bonito e charmoso, mas seus relacionamentos amorosos ultimamente se limitavam a abater recepcionistas e perdidas na noite. Aquelas criaturas que, em sua grande maioria, não representavam mais do que um suculento bife para o almoço, jantar ou ceia.

Ela sorria, simpática e desafiadora. Ele baixou o facho e imediatamente incorporou os ensinamentos de seu velho pai, passando a tratar Mirtes (que se apresentara como Mônica) da maneira que as mulheres devem ser tratadas, conforme as palavras do velho Oswaldo:
-“Nem com muito desprezo que possa parecer arrogância nem com muita atenção que possa parecer necessidade. Fica ali se equilibrando e estudando a presa. Descobrindo o ponto fraco, ataque firme e decidido. Não falha.”
E não falhou. No fim da noite, aninhada no peito dele, ela explicou que achava Mirtes horrível, preferia Marina.
-Mas você disse que se chamava Mônica!
-É mesmo? Hmmm, Mônica também é bonito... Pede café?
-Café?
-É, café, tô com vontade, AAAiii!!!
-Que foi???
-Uma largatixa!!!
Vicente já voava à direita de Júpiter seguindo para Plutão e a largatixa passou lisa.
Ele estava em completo êxtase porque a noite tinha sido perfeita. Mirtes, Mônica, Marina, não importa, era alegre, viva e engraçada. E deliciosa.

Como convém à vida real nada foi rápido nem avassalador. Simplesmente eles foram se vendo mais e mais até que o inevitável compromisso começou a pairar no ambiente.
Nessa altura do campeonato Vicente já estava ciente das diferenças entre ele e Mirtes em questões de como conduzir as respectivas vidas. Ele era o rei do planejamento e ela a rainha do deixa-andar. Ele prezava o linguajar correto e ela primeiro falava e depois, bem depois, às vezes se dava ao trabalho de pensar no que havia falado. O que provocava em Vicente uma certa canseira, mas as qualidades de Mirtes suplantavam esses pequenos percalços e, mais importante, eles estavam irremediavelmente apaixonados.

Vicente criou clima, levou para jantar, pediu champagne e romanticamente, propôs a co-habitação. Mirtes, em seu melhor estilo trator, mais uma vez surpreendeu:
-Topo, mas dona de casa nem pensar. Aliás, uma amiga minha que mexe com shopping me chamou pra conversar. Acho que vai pintar trabalho...
Vicente não resistiu e citou o filósofo Nazareth Murtinho, baluarte do pensamento urco (povo que habita o sopé do Pão de Açúcar):
-O que mexe com shopping é plano econômico ou terremoto. Qual deles a sua amiga pratica?
-Ah, você entendeu, né?
É, ele entendeu.

Já havia entendido também que, na maior parte do tempo, era difícil conversar com a Mirtes. Ela mantinha, normalmente, três ou quatro assuntos no ar, não terminava nenhum e sempre interrompia quando ele tentava alcançar o final de uma frase. Mas, talvez isso fosse parte de um plano cósmico para que ele, Vicente, assimilasse a fina arte da paciência, ruminava com seus botões. Mirtes não dava a menor pelota pra nada, mas ficava furiosa quando percebia que Vicente não estava prestando atenção nela. O que era mais um complicado capítulo do aprendizado dele.

A procura do apartamento, escolha dos móveis, decoração etc, por pouco não levaram o pobre Vicente à loucura. Mirtes não parava quieta, mudava de idéia o tempo todo, aprontando uma confusão digna de show de rock na praia.
Aí o Vicente teve uma idéia que, pelo menos na teoria, era perfeita: começou a passar e-mails para a Mirtes. Assim ele poderia expor seus pensamentos sem interrupções.
Não adiantou coisa nenhuma.
Mirtes abria os e-mails tarde da noite, passava os olhos e deixava pra lá. Se considerasse algum assunto mais importante, ligava pra ele não importando a hora, destruindo assim a teoria e a paciência do cidadão.

Empanturraram os amigos e parentes com variadas comidas e bebidas, ouviram educadamente os discursos bobos, riram de todas as piadinhas sem graça, Mirtes quase enfartou quando o Pereira ameaçou vomitar no tapete, Vicente deu uma dura no Seu Oswaldo quando ele cismou de se engraçar para uma tia (horrorosa) da Mirtes, tiraram todas as fotos que deviam tirar, acalmaram a vizinhança e foram dormir. Felizes, exaustos e casados.

Pouco tempo depois a rotina começou a cobrar seus pesados tributos. Mirtes por qualquer motivo queria discutir a relação, Vicente implicava com tudo e as coisas se complicavam. Para resolver as férias, uma conversa que se presume agradável, recheada de sonhos e expectativas, só faltaram convocar uma arbitragem independente.
Por razões obscuras, Vicente queria viajar em janeiro. Mirtes abriu os trabalhos declarando que achava melhor viajar em fervereiro. Vicente, que já não andava perdoando mais nada, retrucou que fervereiro era um mês muito quente, até fervia... Ela sacou e, em vez do “Ah, você entendeu, né?”, disse que ele era muito visceral. Ele, maldoso, perguntou o que significava visceral. Ela mandou à merda e amuou. Viajaram no final de fevereiro.

Em 15 de novembro nasceu Marina.
Entre charutos, o que Vicente achava uma idiotice mas os amigos achavam chique, ele brincava dizendo que se tivesse nascido um menino ia ter que chamar Deodoro.
Dona Odete, mãe da Mirtes e Dona Vanda, mãe do Vicente, pontificavam entre fraldas, roupinhas, sapatinhos, hipoglós e demais acessórios de recém nascidos. Mirtes ainda estava meio zoadinha, mas alerta o suficiente para proteger a cria contra os perigos da babância de avós, tios, tias e simpatizantes em geral.

Mirtes se revelou mãe dedicada e, por incrível que pareça, passou a prestar mais atenção nas coisas e a planejar com exatidão os intrincados horários de mamadeiras, banhinhos e todas essas chaturinhas que as mães costumam fingir que adoram. Vicente anda pela rua portando o tradicional sorriso bobo e o olhar perdido dos pais estreantes.
Tudo, ou quase tudo, está perfeito.
O quase é por conta da perda instantânea da privacidade do casal. Agora, enquanto a Marina, Dona Odete, Dona Vanda, Seu Oswaldo e as infindáveis visitinhas não dão uma folga, Vic Visceral e Mimi Terremoto se encontram nas salas da internet para falar sacanagens e lembrar os bons tempos que - os dois não comentam mas sabem muito bem - não vão voltar.

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