sábado, 30 de abril de 2016

LÍNGUAS!


Seguem alguns milhares de caracteres sobre línguas - no sentido fonético (a imagem enganou vocês - confessem seus sexopatas!) - textão este que, pra quem gosta, certamente proporcionará grande prazer na leitura desse delicioso artigo sobre a eterna magia que é, no final das contas, a comunicação.


Marco Neves é tradutor, professor e escritor português, autor do livro "Doze Segredos da Língua Portuguesa", pela Guerra e Paz Editores de Lisboa. É também autor do blog Certas Palavras

Alguns livros são como barras de chocolate: apetece comê-los duma vez, mas com alguma força de vontade conseguimos ir deixando uns pedaços para depois. Há um livro que é uma tentação para os meus olhos: A Mouthful of Air, de Anthony Burgess.

Burgess é um dos meus autores favoritos. O livro é sobre línguas. Junta-se o agradável ao apetitoso, e fico maravilhado a ler sobre línguas, sobre literatura e tudo com aquela voz inconfundível de quem faz o que quer com a coitada da língua inglesa, que no fim nem sabe de que terra é.

Assim, com muita força de vontade, vou lendo o livro devagarinho, ao longo de muito tempo. Sim, às vezes consigo fazer isso mesmo. Ora, há pouco apeteceu-me ler mais um pouco. Foi assim que, enquanto ao meu lado o meu filho seguia uma história de lobos e tigres, li sobre aquilo que se sabe da pronúncia de Shakespeare.
Burgess lá explicava, divertido, que se os nossos ouvidos de hoje em dia aterrassem na Londres isabelina e ouvissem o próprio do Shakespeare a declamar os seus sonetos ou a representar alguma das suas peças, ficariam admiradíssimos com o sotaque que hoje diríamos bem provinciano. Só como exemplo, «lust» seria lido com um «u» à portuguesa, «shame» seria algo como «shéme», «so» seria «sô», tal como «to go» («to gô»), «to know» («to nô»), etc.
Ora, o mesmo aconteceria se nós, portugueses de agora, nos víssemos transportados para a Lisboa quinhentista e encontrássemos Camões na rua. A sua pronúncia estaria cheia de características que hoje diríamos ser nortenhas, ou talvez agalegadas ou — caia então o Carmo e a Trindade — brasileiras!
Não estou a dizer que Camões falava como um brasileiro de agora. Estou apenas a dizer que a pronúncia seria tão diferente da nossa que teríamos dificuldade em localizá-la — e algumas das suas características (as vogais bem mais abertas, por exemplo) são hoje típicas do português do Brasil e não do nosso português de Portugal.
Para quem tem da língua a visão de qualquer coisa de imutável que alguns safados andam a mutilar, isto fará muita confusão. Mas, não: a língua muda mesmo muito ao longo dos séculos: as vogais mudam, as consoantes também, as palavras perdem e ganham sentidos de forma imprevisível, a sintaxe também tem as suas danças. (A ortografia, se formos a ver bem, até acaba por ser dos aspectos da língua que menos muda…)
Algumas das características do português-padrão que damos por adquiridas e que fazem parte integrante do «falar bem» de hoje em dia começaram como modas ou como maneiras de falar que os bem-falantes da época desprezavam activamente. Tudo isto tem muito de aleatório — e pouco de consciente.
Podemos analisar as mudanças e até combater algumas delas. Agora, o que não é verdade é que a língua exista imutável e pura, fora da boca dos seus falantes. E, sim, temos mesmo de admitir: a língua portuguesa, como qualquer outra, é um bicho difícil de apanhar e de compreender — mas, como um tigre, é um bicho perigoso, mas muito belo.
Sim, Camões falava um português diferente do nosso: e eu, por mim, gostava de poder ouvi-lo — não sendo possível, podemos tentar reconstruir a sua pronúncia através dum estudo aprofundado da sua escrita: olhando, por exemplo, para certas características ortográficas, para os erros que denunciam determinada forma de falar ou para as rimas, que mostram como o final das palavras soava na época (são algumas das técnicas dos linguistas históricos).
Enfim, é assim que sabemos que, provavelmente, Camões soaria, aos nossos ouvidos, um pouco a nortenho com travos de brasileiro. Tudo isso faz parte da nossa língua — tal como a estranha pronúncia de Shakespeare também faz parte do inglês.
Ora, longe de me horrorizar, pensar nisto põe-me um sorriso na boca.

(Via Gilberto Cruvinel no GGN)

4 comentários:

  1. Achei interessante e leve. Gostei particularmente da ultima frase que marca a leveza do texto e mostra o desapego e até mesmo uma curtição do autor com a diversidade e a mudança. Abraços. Tche

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    1. O cara é bom de bola mesmo.
      Dá uma olhada no blog dele!
      Abs.

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  2. Um dos homens mais cultos que conheci chamava-se Geraldo Sardinha, pai do hoje Embaixador brasileiro em Israel, meu primo. Era professor de História e Latim. Na realidade, era uma enciclopédia que andava. Enquanto discursava aspectos interessantíssimos da história mundial, interrompia o relato para nos falar sobre a etimologia das palavras de sua sentença. Nossa língua possui origem latina, mas inúmeras palavras foram importadas do grego, como oftalmo=olho, oto=ouvido, rino=nariz, algia=dor, micróbio, miocárdio, geografia, helicóptero, ortografia, fotografia, e por aí vai.
    Vitor Lemos

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    1. Assim como a observação dos sotaques, dos diferentes empregos das mesmas palavras em situações e regiões diferentes, a etimologia é uma cachaça. Das boas.

      A língua portuguesa também é influenciada pela língua árabe quando os mouros invadiram a península ibérica cuja havia sido invadida pelos romanos, cuja havia sido invadida pelos germânicos além dos perigosíssimos godos, ostrogodos e visigodos!
      Daí... Olha que suruba de influências!

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