Seguem alguns milhares de caracteres sobre línguas - no
sentido fonético (a imagem
enganou vocês - confessem seus sexopatas!) - textão este que, pra quem
gosta, certamente proporcionará grande prazer na leitura desse delicioso
artigo sobre a eterna magia que é, no final das contas, a comunicação.
Marco
Neves é tradutor, professor e escritor português, autor do livro "Doze
Segredos da Língua Portuguesa", pela Guerra e Paz Editores de Lisboa. É também
autor do blog Certas Palavras
Alguns livros são como barras
de chocolate: apetece comê-los duma vez, mas com alguma força de vontade
conseguimos ir deixando uns pedaços para depois. Há um livro que é uma tentação
para os meus olhos: A Mouthful of Air, de
Anthony Burgess.
Burgess é um dos meus autores
favoritos. O livro é sobre línguas. Junta-se o agradável ao apetitoso, e fico
maravilhado a ler sobre línguas, sobre literatura e tudo com aquela voz
inconfundível de quem faz o que quer com a coitada da língua inglesa, que
no fim nem sabe de que terra é.
Assim, com muita força de vontade, vou lendo o livro
devagarinho, ao longo de muito tempo. Sim, às vezes consigo fazer isso
mesmo. Ora, há pouco apeteceu-me ler mais um pouco. Foi assim que,
enquanto ao meu lado o meu filho seguia uma história de lobos e tigres, li
sobre aquilo que se sabe da pronúncia de Shakespeare.
Burgess lá explicava, divertido, que se os nossos ouvidos de
hoje em dia aterrassem na Londres isabelina e ouvissem o próprio do Shakespeare
a declamar os seus sonetos ou a representar alguma das suas peças, ficariam
admiradíssimos com o sotaque que hoje diríamos bem provinciano. Só como
exemplo, «lust» seria lido com um «u» à portuguesa, «shame» seria algo como
«shéme», «so» seria «sô», tal como «to go» («to gô»), «to know» («to nô»), etc.
Ora, o mesmo aconteceria se nós, portugueses de agora, nos
víssemos transportados para a Lisboa quinhentista e encontrássemos Camões na
rua. A sua pronúncia estaria cheia de características que hoje diríamos ser
nortenhas, ou talvez agalegadas ou — caia então o Carmo e a Trindade —
brasileiras!
Não estou a dizer que Camões falava como um brasileiro de agora.
Estou apenas a dizer que a pronúncia seria tão diferente da nossa que teríamos
dificuldade em localizá-la — e algumas das suas características (as vogais bem
mais abertas, por exemplo) são hoje típicas do português do Brasil e não do
nosso português de Portugal.
Para quem tem da língua a visão de qualquer coisa de imutável
que alguns safados andam a mutilar, isto fará muita confusão. Mas, não: a
língua muda mesmo muito ao longo dos séculos: as vogais mudam, as
consoantes também, as palavras perdem e ganham sentidos de forma
imprevisível, a sintaxe também tem as suas danças. (A ortografia, se formos a
ver bem, até acaba por ser dos aspectos da língua que menos muda…)
Algumas das características do português-padrão que damos por
adquiridas e que fazem parte integrante do «falar bem» de hoje em dia começaram
como modas ou como maneiras de falar que os bem-falantes da época desprezavam
activamente. Tudo isto tem muito de aleatório — e pouco de consciente.
Podemos analisar as mudanças e até combater algumas delas.
Agora, o que não é verdade é que a língua exista imutável e pura, fora da
boca dos seus falantes. E, sim, temos mesmo de admitir: a língua
portuguesa, como qualquer outra, é um bicho difícil de apanhar e de compreender
— mas, como um tigre, é um bicho perigoso, mas muito belo.
Sim, Camões falava um português diferente do nosso: e eu, por
mim, gostava de poder ouvi-lo — não sendo possível, podemos tentar
reconstruir a sua pronúncia através dum estudo aprofundado da sua escrita:
olhando, por exemplo, para certas características ortográficas, para os erros
que denunciam determinada forma de falar ou para as rimas, que mostram como o
final das palavras soava na época (são algumas das técnicas dos linguistas
históricos).
Enfim, é assim que sabemos que, provavelmente, Camões soaria,
aos nossos ouvidos, um pouco a nortenho com travos de brasileiro. Tudo isso faz
parte da nossa língua — tal como a estranha pronúncia de Shakespeare também faz
parte do inglês.
Achei interessante e leve. Gostei particularmente da ultima frase que marca a leveza do texto e mostra o desapego e até mesmo uma curtição do autor com a diversidade e a mudança. Abraços. Tche
ResponderExcluirO cara é bom de bola mesmo.
ExcluirDá uma olhada no blog dele!
Abs.
Um dos homens mais cultos que conheci chamava-se Geraldo Sardinha, pai do hoje Embaixador brasileiro em Israel, meu primo. Era professor de História e Latim. Na realidade, era uma enciclopédia que andava. Enquanto discursava aspectos interessantíssimos da história mundial, interrompia o relato para nos falar sobre a etimologia das palavras de sua sentença. Nossa língua possui origem latina, mas inúmeras palavras foram importadas do grego, como oftalmo=olho, oto=ouvido, rino=nariz, algia=dor, micróbio, miocárdio, geografia, helicóptero, ortografia, fotografia, e por aí vai.
ResponderExcluirVitor Lemos
Assim como a observação dos sotaques, dos diferentes empregos das mesmas palavras em situações e regiões diferentes, a etimologia é uma cachaça. Das boas.
ExcluirA língua portuguesa também é influenciada pela língua árabe quando os mouros invadiram a península ibérica cuja havia sido invadida pelos romanos, cuja havia sido invadida pelos germânicos além dos perigosíssimos godos, ostrogodos e visigodos!
Daí... Olha que suruba de influências!