segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A PRIMEIRA GELADEIRA


Segue texto primoroso do Tim Vickery - colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.


Minha primeira geladeira
e por que o Brasil de hoje
lembra a Inglaterra dos anos 60

Acho que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em 1965 foi um golpe e tanto de sorte.
Que momento! The Rolling Stones cantavam I Can’t Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma música do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.

Na minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem geladeira, televisão ou máquina de lavar.
Mas eram apenas limitações, e não o medo e a pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.

Tive saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de Londres, um apartamento com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer faculdade, uma possibilidade além dos horizontes de gerações anteriores. E não era de graça. Melhor ainda, o Estado me bancava.

Olhando para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro.
O curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores.
Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar perspectiva.

Será que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Não tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da Inglaterra da minha infância.

Por lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular (1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold Macmillan, que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: "nunca foi tão bom para você" ("you’ve never had it so good", em inglês).

É a versão britânica do "nunca antes na história desse país". Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas palavras, comemorando um "estado de prosperidade como nunca tivemos na história deste país" ("a state of prosperity such as we have never had in the history of this country", em inglês).

Macmillan, "Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.

Em 1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou "a raiva da classe média" e temeu uma "luta de classes". Quatro anos mais tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho como resultado da "revolta da classe média e da classe média baixa", que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou da chamada "classe trabalhadora" ("working class", em inglês) na Inglaterra.

Em outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais pobres.

Mais uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?

Alguns anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe operária estava ganhando demais.

No Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de trabalhadores em setores menos "nobres"? Me despedi do elemento com a mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a distribuição de renda.

Mais tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas certezas continuavam intactas.

Agora, não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação.
Essa história se aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso vai gerar uma reação.

No cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada, incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.
A revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos.
Mas tem um outro fator muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação contra o progresso popular.
Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que, agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de origem mais humilde.
Firme e forte é a mentalidade do: "de que adianta ir a Paris para cruzar com o meu porteiro".

Harold Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos.

Consumo não é tudo, mas tem seu valor.
Sei por experiência própria que a primeira geladeira a gente nunca esquece.       

10 comentários:

  1. Tiago,
    Causou-me espanto o texto que você classificou primoroso.
    Durante o espanto, sobreveio-me enorme surpresa, para não dizer decepção, ao constatar em um nobre amigo, a quem imputo bom grau de inteligência e boa capacidade de percepção de nossas minúcias sociais, algo inesperado. Inesperada obtusidade desse amigo em não perceber o quanto seu elogiado colunista foi infeliz e quanta fraqueza analítica demonstrou.
    (Aliás seria bom conhecer alguma coisa mais do currículo dessa pessoa que não fosse tão somente ser um componente de mídia e ter uma formação acadêmica trivial).
    Considerando só à comparação com a Inglaterra, me dói dizer que é um absoluto disparate tentar igualar nosso pobre povo, inculto e escravizado pelo populismo, à linhagem britânica, reconhecida por sua disciplina individual e sua grande responsabilidade pelo sucesso coletivo de sua sociedade.
    É mesmo vergonhoso depararmo-nos com nossas mazelas políticas e sociais, nosso congresso enlameado, nossa economia vilipendiada, nossos lulas, dilmas e cunhas, enquanto a Inglaterra ostenta sua democracia invejável, sua organização impecável e seus Winstons Churchills, Tatchers e centenas de outros estadistas ao longo de sua história.
    É vergonhoso ter ainda nossas Gaviões da Fiel, Máfia Azul, Galoucuras da vida, e outras, badernando infindavelmente e ajudando-nos a tomar de 7 a 1, enquanto há muito tempo os hoolligans foram alijados do cenário futebolístico da Inglaterra, rapidamente.
    Manda um recado pra ele, diga que ele está pensando igualzinho aos nossos Hermanos no início da década de 80, quando se acharam iguais aos ingleses, a ponto de terem a pretensão ilusória de derrotá-los nas Malvinas. Babacas, se fuderam. Diga pra ele também, que não pode depreciar tanto sua terra natal, tão cheia de força e tradições, e que o reino da Inglaterra só deverá se extinguir após a extinção dos quatro reis do baralho! E que não é à toa que esse babaca não teve a competência de sobreviver lá e veio procurar desavisados do lado de cá para derramar suas imbecilidades.
    Continue informando a ele que também eu faço parte dessa elite que ele condena, pois nasci de família pobre e me formei, assim como meus irmãos, sem depender de socialismos falsos e deformados. E não participo dessa mentira de que o porteiro do prédio é discriminado pelo seu semelhante brasileiro, em Paris. É no mínimo uma afronta ao nosso pobre povo. LC

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    1. Luiz Celso,
      ainda bem que, para a saudável manutenção de nossas controvérsias, não concordo com você.

      Pra começar, me espantou a ira de suas palavras. O que, talvez tenha sido a causa de, a meu ver, algumas incoerências.

      Não vi no texto nenhuma comparação de povos e sim de momentos.

      Seguindo, não concordo com a desvalorização do autor pela simplória razão de discordar de suas opiniões.

      Discordo da sua comparação sobre os políticos. Pra mim, são todos da mesma laia. (Thatcher estadista??!!)

      Também não posso concordar com a afirmação de que as (concordo) nojentas 'torcidas organizadas' tenham ajudado a tomarmos o 7 a 1.
      E a CBF, nada??!! E a safadeza generalizada no futebol, nada??!!

      Não entendi o paralelo entre a guerra das Malvinas (risos) e o texto.

      Não vi, também, nenhuma depreciação da terra natal pelo autor.

      Mas, tenho certeza que, agora, você deve estar menos irritado uma vez que seu mui digno Presidente da Câmara entrou com o pedido de impeachment dessa abominável criatura que concentra todos os males da nação desde que aqui chegou Cabral.

      Abração.

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    2. Tiago, demorei um pouco para dar prosseguimento a nossas saudáveis controvérsias tertulianas,
      Colocando uma sequência lógica em nossa conversa, não foi você que em princípio não concordou comigo, mas sim eu que não concordei com você (vai ser chato assim, né?).
      Realmente, a postura do autor causou-me ira, que é um um sentimento natural, sem se constituir pecado. Mas não foi causa de incoerências.
      Ao se analisarem `momentos` de um povo ou de uma nação (se bem que o Brasil está longe de se transformar em verdadeira nação), há que se considerar que o termo ´momento´ é apenas uma medida de tempo e não influi nos destinos. Quando se o quer, como você, em sentido figurado, significando ´momento de um povo`, estará se traduzindo o anseio e a ação de um POVO para a gestão de seu destino. O autor comparou, sim. o brasileiro com o inglês.
      Desculpe, mas não desvalorizei o autor, apenas achei carente a citação de tão simples atribuições curriculares e perguntei por alguma complementação. ´Babaca´ foi porque `tentou entender o conterrâneo, senhor de idade, cortando a conversa, com vontade de vomitar´. Dá procê?
      A baderna infindável das torcidas organizadas `ajudaram` para os 7 X 1. Fora a safadeza generalizada.
      Discordar entre políticos brasileiros e ingleses já é brincadeira. Mesmo com todos os vícios de qualquer organização política, põe dois zeros no sete e fica 700 X 1. Enquanto isso, Tatcher é reverenciada como grande estadista pelo mundo afora.
      Malvinas... Quiz eu evidenciar o despeito que nós, pobres bolivarianos latinos, temos por povos mais disciplinados, determinados e ciosos de suas tradições. A ponto de termos a falácia de querermos nos igualar, do nada, isto é, não fazendo esforço algum. E, quando essa falácia é argentina, piora, pois os iludiu a ter o sonho inalcançável de sua vitória. Babacas, se fuderam. Não tiveram nosso grande Castro Alves: ´O inglês, marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, Pois a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou´.
      O ato do famigerado Cunha não é lenitivo para minha irritação.
      Tampouco considero a presidentA (esse A sim me causa enorme irritação) ´abominável criatura´. Há desesperança quando sabemos que estamos nas mãos dos políticos do nordeste, berço da bestial Abominável Criatura.
      Tiago, você está em nosso querido nordeste, que nos fornece quase tudo de bom: clima praiano gostoso, prazerosas praias de cálidas águas, deliciosas frutas de sabores mil, excelentes cantores e músicos de centenária modalidade musical, povo trabalhador que construiu mais da metade das grandes cidades do sudeste, povo inteligente e sincero, grandes artistas principalmente os que nos fazem melhorar nosso humor, grandes escritores, inspirados poetas, etc., etc.
      No entanto é o nordeste que nos fornece a maior desgraça que temos em nosso país: a corja de políticos nordestinos (com raras exceções) que são totalmente desprovidos de moral e ética, que se representam apenas a si próprios, dessa forma apropriando-se dos recursos públicos, desavergonhadamente, para perpetuarem seus mandatos.
      Tenho dito. LC.
      (Abusei, não?)

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    3. Abusou não...

      Em 'apertada síntese' (aprendi essa com nosso querido Dudu), continuo discordando sobre a Thatcher.

      Em relação às torcidas 'organizadas', sei que você não se referiu às torcidas que estavam nos estádios durante a Copa. Porque essas estavam lá para fazer selfies e acenar para as câmeras. Mal entendiam o que se passava no campo.

      Em relação aos políticos nordestinos, ao contemplar os Cássio Cunha Lima, Manoel Jr, Agripino, etc, etc, concordo.
      Mas, comparados ao resto dessa corja, acho que eles, apesar de se revelarem "promissores", ainda são "fiótes".

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  2. Tiago, não creio mesmo que a classe média brasileira se ressinta da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres. Ela se ressente de um governo ineficiente e extremamente corrupto, cujas ações contribuem decisivamente para que as suas condições de vida se assemelhem às dos mais pobres. Aquele "senhor conterrâneo" não pode ser tomado como um exemplo generalizante. É somente uma besta humana isolada. Não representa o mundo, a raça humana, ou a classe média. O PT, sim, não só se ressente da condição pensante da classe média, como a odeia, como expressa a sua porta-voz Marilena Chiarelli. Não creio que algum governante petista se preocupe, genuinamente, com os mais pobres. Preocupam-se com votos, vindos destes, para que os seus bolsos possam estar sempre cheios.
    Vitor Lemos

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    1. Vitor,
      o PT, que na minha opinião, era uma esperança ainda que longínqua de melhoria na (argh) política brasileira, acabou. Acabou por incompetência e ganância.
      Entretanto, não posso concordar que a simples extinção do PT seja o eldorado da nação. Afinal, é impossível acreditar que a dita oposição tenha solução que não seja o infame neoliberalismo. Ou a 'meritocracia' do Aécim. Quais as propostas da oposição? Ainda não vi nenhuma que não seja a simples volta ao poder não importa como.

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  3. Tiago, Aécio (espertamente, é lógico) quis transformar o Bolsa Família em política de Estado, para que ele perdesse a sua condição de voto cabresto, mas o PT (espertamente, também) não concordou (por quê seria, né?). De qualquer forma, as conquistas sociais vieram para ficar. O PT será letra morta dentro de no máximo três anos, e nenhum político de outra sigla ousaria, em campanha ou no exercício do cargo, romper com este benefício, porque correria o risco de ressuscitar o PT via sua única conveniente bandeira. Para a economia, não tenha dúvidas, a extinção do PT será o Eldorado da nação, que precisará de, no máximo, dois anos sob novo comando para colocar o bonde nos trilhos. A estratégia eleitoreira de Dilma de congelamento de preço do combustível para conter a inflação, e que impôs perdas bilionárias à Petrobrás (além do assalto promovido pelo partido), e a redução de IPI para veículos como estratégia para manter a economia aquecida, gerando um rombo enorme nas contas públicas, que resultou na necessidade das famosas pedaladas, não mais se repetirão por parte de nenhum governante. Sem interveniência nefasta por parte do governo, a economia brasileira caminha com as próprias pernas. Ah, é pena que teremos que esperar o ano de 2026 (lacraram espertamente as informações) para sabermos o que o partido da estrela vermelha fez com o dinheiro do BNDS. O senhor vai se assustar com o volume de investimentos em países como Cuba, Venezuela e Bolívia, em detrimento da uma possível multiplicação de nossos carentes leitos em hospitais. Leitos não dão votos!
    Vitor Lemos

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    1. "... a extinção do PT será o Eldorado da nação, que precisará de, no máximo, dois anos sob novo comando para colocar o bonde nos trilhos."
      Pergunta:
      Qual "novo comando"? Aécim? Serra? FHC? Temer(idade)?
      É ruim, hein?

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  4. Desculpem, vou entrar na conversa.
    Tiago, não entendo as pessoas esclarecidas que defendem o governo atual. Suponho que algumas fazem isso por ideologia. Mas a ideologia não pode nos fazer fechar os olhos à realidade.
    Concordo inteiramente que não há alternativa salvadora no horizonte. Mas primeiro é preciso nos livrarmos da maior causa do mal atual, que só faz aprofundar a nossa crise e impede qualquer esperança de melhora da economia. Depois, vê-se o que é possível.

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    1. Não defendo o governo atual.
      (Até porque sempre achei o 'Supremo Baiacu da Nação' difícil de engolir.)

      Defendo o fato desse governo ter sido eleito e não posso concordar com a forma que estão querendo "nos livrar da maior causa do mal atual".

      Está ruim? Certo que sim.
      Então, que tal votar com mais consciência?
      Votar. E não 'golpear'.

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