domingo, 16 de maio de 2010

463

O mais incrível foi a velocidade do acontecimento.
Ao levantar a tampa da privada para o xixi matinal, 5-287-463 se tornou estatística.
O terrível monstro paravirtual das descargas, num bote certeiro e fulminante, arrebatou para as profundezas todo o arsenal viril ali presente.
Ainda sonolento, 5-287-463 ficou parado. Não sentiu nada. Nenhuma dor, só um frio na barriga. Já havia escutado alguma coisa sobre relatos de vítimas. Sempre eram histórias chocantes e improváveis envolvendo rugidos do monstro – que ecoavam nas paredes dos banheiros – e o conseqüente berreiro dos despojados. Não que fosse uma cena grotesca com sangue jorrando ou coisas no gênero. As vítimas não eram sequer tocadas e raramente sentiam algum tipo de dor. Mas sentiam imediatamente, e isso era o pior, toda a ausência da energia que acabava de descer pelas entranhas do monstro.
Sempre achou que isso não aconteceria com ele.
Agora, filosofou, resta viver para saber como vai ser.

Trabalhava numa Central Operadora de Comunicações e, a caminho do escritório, saltou da esteira para pegar o lanche, como sempre fazia. Transferiu os créditos, recebeu seu pacote, passou sem olhar pelo display, em tamanho natural, de 444 (a delícia da hora, seminua, sussurrando eroticamente prosaicas sugestões de compras), voltou para a esteira e seguiu em frente. Claramente, estava confuso.

Chegando ao trabalho, cumprimentou todo mundo e ativou seu terminal. Todos os dias, antes de começar a fingir que trabalhava, dava uma longa olhada geral nas suas páginas favoritas. Checava as últimas notícias, os resultados das corridas e as correspondências. Sempre havia convites para parcerias virtuais e, às vezes, para parcerias reais. Estas estavam ficando um pouco fora de moda, mas para ele ainda aconteciam. E muito. Mas hoje, 463 (como era conhecido) tinha ido direto terminar uma planilha de fluxos requalificados que estava um pouco atrasada. Só notou o inusitado da situação quando, ao apresentar o resultado para sua analista-senior (8-338-966, dona do mais harmonioso conjunto corporal da seção), viu em seu rosto um espanto bem humorado seguido de um meloso -Hmmm, logo cedo? O que te aconteceu?!
Ela, mais de uma vez, havia pernoitado no seu cubículo e adorado as inovações sensoriais que ele disponibilizava (à custa de malabarismos econômico-financeiros) no aposento. Quis mais, os dois se divertiam e as coisas até poderiam caminhar bem. Mas, 463 tinha por norma de conduta não se envolver com ninguém. Humano ou não.
-Nada.
Respondeu ele, espantado de verdade. 966 era coisa do passado, mas ele nunca perderia a deliciosa oportunidade de retomar uma parceria eventual. E aquele tom de voz era mais claro do que um sinalizador marítimo: ela queria.
Daí o espanto de 463. Ele não estava sequer cogitando a hipótese! Lembrava das gostosas ocorrências entre eles e... nada. E, mais espantoso, não sentia nem frustração.

Voltou para seu terminal, abriu as correspondências e encontrou dois convites para as noites seguintes. Uma já conhecida e outra nova. A conhecida tinha sido decepcionante. Só para ele, pelo visto. A nova era resultado de uma campanha de quase um mês envolvendo intensa atividade intelectual, com troca de correspondências, de hologramas, de sensações, envio constante de cartões bem humorados e inteligentes, seguidos de cartões bem humorados e picantes para então descambar no que interessava.
InteressAVA???!!!
É... Interessava. Agora ele pensava na 346 (“Temos os mesmos algarismos finais só que misturados...” tinha sido o approach. Um tanto ou quanto bobo, mas bastou.) e não via nela nenhum atrativo. Era chata, superficial e consumista. Claro, era portadora de um espetacular conjunto corporal cujo holograma ele passara horas analisando, ampliando, estudando e babando. Mas agora a hipótese de parceria estava descartada.
Pensou, com a praticidade inerente à sua formação, que pelo menos iria economizar muitos créditos desativando os aparelhos sensoriais.

Algum tempo depois, visando conhecer melhor sua nova condição, entrou num grupo de conversas e lançou a pergunta: “Algum despojado na sala?” Como isso era, de certa forma, um tabu, não esperava muitas respostas. Mas elas vieram em número maior do que ele tinha imaginado. Entre todas, uma chamou atenção: “Despojado, não! Eu encaro a vida sob uma nova perspectiva.” O nick era “ISIS” e ele foi atrás.
463: Olá, ISIS. Como é isso de “nova perspectiva”?
ISIS: Oi. Ficou curioso por que?
463: Ora, novas perspectivas sempre podem ser interessantes...
ISIS: É. Pra quem sabe aproveitar.
463: Como assim?
ISIS: É pra quem sabe aproveitar as coisas novas que a vida oferece!
463: E o que a vida oferece a um despojado?
ISIS: Muitas coisas. Você foi despojado há quanto tempo?
463: Quem disse que eu sou despojado? Você é.
ISIS: Não. Sou uma reposicionada. Despojados são os que não enxergam as novas perspectivas. O que parece ser seu caso.
463: Você é mulher!
ISIS: Sou muito mulher... E você? É despojado ou despojada?
463: Você está vendo meu numeral. Final impar. Sou homem. Por que você não usa seu numeral? O que é ser reposicionada? Alguma opção de parceria...?
ISIS: Não, seu bobo. Você não me respondeu. Há quanto tempo foi despojado?
463: Ok. Pouco mais de uma semana.
ISIS: Tadinho! Está muito desamparado?
463: Não. Estou é espantado. Não sinto nada... Não sinto raiva, vontade, não tenho ansiedade, nada.
ISIS: É... No começo a gente não sente mais nada mesmo. Depois pode piorar. Depende de você.
463: Como assim? Você fica falando coisas pelas metades. É pra despertar a minha curiosidade?
ISIS: Claro que é. Quer saber de uma coisa boa?
463: Mulheres... Achei que só os homens fossem atacados.
ISIS: É um pouco diferente, mas acontece conosco também. Quer saber ou não?
463: Claro. O que é?
ISIS: Prepare-se: tchan, tchan, tchan-tchan!!! A coisa não é irreversível!!!
463: E daí? Já te falei que não sinto nada. Não tenho saudades, não tenho vontades, não tenho ambições nem frustrações quanto a isso. Passou. Parece que nunca existiu.
ISIS: Você está recente. Logo você começa a ter saudades. É a crueldade do monstro. De início parece que nada aconteceu. Você estranha, mas não sente nada. Acha até que pode ser bom. Depois começa a vontade. Não tem jeito, está dentro da gente. Aí vai ficando muito ruim. Mas, como te falei, não é irreversível.
463: Então, tá. Se isso começar a me acontecer você me cura, tá combinado?
ISIS: Você não está levando a sério, mas tudo bem. Quando precisar, você me acha aqui. Tchau. Um beijo bem gostoso. Lembra como é...?
463: Não. Tchau.

Alguns dias depois, 463 entrou num caixa automático do qual vinha saindo uma humana que, em outros tempos, teria nele provocado imediatos esforços para a devida inclusão ao extenso catálogo meticulosamente construído durante toda uma vida de labuta. Uma linda visão que 463 nem registrou. Mas o perfume ficou no ambiente e era uma delícia de perfume. Ele sentiu uma ligeira angústia que não soube definir e deixou pra lá.
A última semana tinha sido de descobertas. Por exemplo, se divertiu com o fato de ter entrado numa reunião com quatro novas gerentes de vendas e ter saído sem nada mais na cabeça a não ser as questões tratadas. Além de uma análise puramente estética sobre a beleza ou a falta de, dos conjuntos corporais de cada uma. Divertiu-se também com as conversas de intervalo. Numa delas, 235 contava, com habitual riqueza de detalhes, as ocorrências da noite anterior. 463 fez todas as expressões e emitiu todas as interjeições que sabia serem apropriadas para o momento. Mas tinha tanto interesse no assunto quanto teria numa partida de boliche. (Antigo jogo em que os contendores arremessavam seus egos sobre uma pista estreita e lisa com dez pequenos e arredondados pilares no fundo. O vencedor era o que mais incômodo psicológico causasse ao adversário. Os pequenos pilares eram só enfeite.)

Por outro lado, as previsões de ISIS começavam a se confirmar. Depois do acontecido no caixa automático, outros pequenos dissabores foram se somando. Além da persistência daquele perfume em sua mente, um dia, ao passar no corredor, um suave roçar de corpos com 966 o deixou com uma sensação desconfortável. Numa manhã, a voz sensual, ainda que mecânica, da despertadora o fez querer continuar na cama. Noutra oportunidade, ao por do sol, a rápida e dourada visão do que estava por baixo de uma distraída saia levantada pelo vento provocou uma certa taquicardia. E por aí afora.

463: Oi ISIS. Lembra de mim?
ISIS: Lembro sim. Como vai a vida?
463: Indo. Você tinha razão. Estou ficando preocupado. No princípio achei mesmo que poderia até ser uma boa. Estava me sentindo leve, sem nenhum sentimento de perda, nenhuma necessidade, nenhuma frustração, mas agora está ficando complicado. Já pensei até em arriscar uma parceria, mas estou confuso. Sei que nada vai acontecer, que vai ficar mal pra mim, mas quem sabe... Tô com vontade, pô! Você disse que é possível reverter, como é que eu faço?
ISIS: Calma. Não é como num caixa automático... Tem que vir de você.
463: Ih! Já vi que não vai dar certo. O que está acontecendo? Será que o século 20 voltou à moda e eu não estou sabendo? Auto-ajuda, aquelas coisas? E eu achando que era sério! Prefiro auto-atendimento...
ISIS: Mas que sujeito mais ansioso e sarcástico! Me agrada, isso... Vou tentar resumir. Você precisa buscar dentro de você o sentimento que gera a vontade, entendeu agora?
463: Não. Que sentimento que gera vontade? Vontade é vontade. Tem ou não tem. Não vem acompanhada de sentimento.
ISIS: É, o problema é grave. Me conta uma coisa: como você se sentia durante as suas parcerias
463: Ora, algumas eram muito boas, outras nem tanto, mas no geral era bem satisfatório.
ISIS: E você se preocupava com o que elas sentiam? Acha que elas também gostavam?
463: Claro! Quer dizer, acho que sim, é provável. Mas o que isso tem a ver?
ISIS: Tudo. É uma pena, mas o tal sentimento que falei deveria estar aí, junto. Tem que procurar, identificar e construir. Curiosidade: você percebe a diferença entre almoçar e desfrutar uma refeição?
463: Você gosta mesmo de falar por imagens. Que tal me mandar seu holograma?
ISIS: Vou mandar. Você está pensando em arriscar uma parceria comigo?
463: Ôpa! Achei que vocês ainda gostassem de um pouco de romantismo...
ISIS: Ainda gostamos, sim. Mas me diga: não era com isso que você sonhava antigamente? Uma parceria sem precisar perder tempo com toda aquela conversa fiada... Uma numeral inteligente o suficiente pra saber direitinho a hora de ir embora?
463: Continua parecendo discurso antigo. Aliás, você faz o gênero antigo. Nem numeral usa. Conservadora...
ISIS: Meu numeral é 7-532-634. Não sou conservadora e você não gosta de pensar. Preguiçoso...
463: Temos os mesmos algarismos finais só que misturados!
ISIS: Ai, ai, ai, esse papinho, não! Responde, era ou não era o seu sonho?
463: Ô mulher insistente... Tá bom: na maioria das vezes era sim. Afinal isso tornaria as coisas muito mais fáceis e práticas pra todo mundo, não acha?
ISIS: Acho é que você precisa urgente de uma conversa. Ao vivo. Me encontra no mall daqui a quinze minutos. Tchau. Vou usar luz negra.

Há pelo menos uma década ninguém mais usava luz negra. Então foi fácil de achar. Ela parecia uma foto em alto contraste. O facho de luz negra, de cima para baixo, projetava uma imagem que poderia lembrar Mortícia Adams, vamp famosa do século 20. A profusão de fachos coloridos ao redor até compunha uma cena interessante. Entretanto, o que jogou 463 no chão foram os verdes e faiscantes olhos da ISIS. Mas não seu olhar. Ela vinha com aquele ar de mãe quando acha filho perdido na praia – amor e raiva lutando pelo mesmo espaço.
ISIS era decidida. O beijo na boca embalado pelo perfume que, desde o dia do caixa automático, ficara entranhado em suas narinas, provocou em 463 um arrepio geral.
Naquela noite foi jantar e muito conversar. Só.
Seguiram conquistando intimidades, conhecimentos e necessidades.
A reversão, para os dois, aconteceu ao natural. Conseqüência do sentimento que 463, com bom humor, até hoje se recusa a admitir: amor.

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