Bom pra nós.
Texto e fotos do nosso prezado Fernando Coelho. (Tomara que na próxima ele resolva ir pra Xangai, Ibiza, por aí...)
Uma experiência seminal de sociedade
Fernando Coelho – Julho de 2011
Daqui do meu ensolarado ócio de férias, vislumbro a luz singular do nordeste potiguar, que apimenta o panorama ao meu redor com doses cromáticas especiais, atribuindo tonalidades ao mar, ao céu e a terra, em uma jovial disputa para mostrar qual mais se esmera. A noite é límpida, estrelada. Parece que não há atmosfera. Sinto que se eu pular alto, vou correr o risco de cair no espaço e vagar para sempre.
Estou na pequena aldeia de pescadores situada na praia de Maracajaú, no município de Maxaranguape, no estado do Rio Grande do Norte. É um micro local, com micro clima, micro civilização, micro economia e micro política.
O único aspecto que não é micro é a boa e velha natureza humana.
A pequena aldeia ainda hoje tem um forte vínculo com seu DNA ancestral de pescadores. As jangadas, embarcações que Amyr Klink reputa como perfeitas, decoram toda a faixa de praia. Quando não no mar, estão estacionadas abrigadas por coqueiros, que abundam por toda parte. É uma cena romântica, idílica, descrita, reescrita e celebrada pelas melhores penas desta região, que já nos deu Jorge Amado, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna e tantos outros, encadernados ou pendurados em cordel.
Hoje, neste primeiro decênio do século XXI, a pequena aldeia já está impactada e transformada pelo apelo turístico global. “Tradewinds”, os ventos alísios, que historicamente assopraram a brasa desta modesta economia, propelindo as jangadas ao mar e aos peixes, hoje ajuda a impulsionar os jatos que trazem turistas estrangeiros, sobretudo europeus, atraídos pela promessa de sol que se apresenta no final do acesso aéreo rápido que liga a península ibérica ao aeroporto de Natal.
Nada disso, entretanto, parece afetar a parte micro desta delicada aldeia. Aqui tudo que temos de bom e de não tão bom, está representado em micro doses. O colorido espectro humano oferece pelo menos um exemplar de cada um dos estereótipos que temos na grande sociedade. Na faixa visível de luz desse espectro conseguimos ver o empreendedor, a comerciante, o farmacêutico, o policial, a professora, o bêbado, o dono da LanHouse, a esposa do dono da padaria, o corretor de jangadas, a proprietária do restaurante (tem o PF, a Pizzaria e o chique) e a indefectível presença do poder público populista, manifestado pela existência de um posto de saúde (equipado com uma ambulância Fiorino) que exibe o canhestro moto da atual administração: “Nossa praia é o trabalho”.
Vemos também os arrivistas da nova onda. São operadores de mergulho, pousadas mais requintadas, pequenos hotéis e bugueiros. Estes desfrutam de uma reputação sombria, por ser considerada uma polêmica raça de mercadores de duvidosos passeios, realizados com buggy em dunas, cujos efeitos ambientais provocam grande controvérsia.
Na faixa de infra-vermelho e difícil de ver do espectro, ficamos sabendo das faces mais sinistras deste pequeno agrupamento. É verdade que nesta micro dose o mal tende mais para a inocência de pequenos desvios do que para a violência moderna dos grandes centros. Chamou-me a atenção o crime de abuso da fé perpetrado por um padre anterior ao atual. A guisa de levantar fundos para a reforma da graciosa igrejinha setecentista da aldeia, o referido padre amealhou a fortuna local de R$ 13.000,00 (treze mil reais), com a qual escafedeu-se a nunca mais dar vistas. A doce igrejinha de presépio permanece implorando reformas. A população, escaldada, comprometida mais com Deus do que com a Igreja, voltou a buscar poupar esses fundos, porém, desta feita, sem permitir acesso do atual padre ao duramente obtido pecúlio.
Vivendo, aprendendo e crescendo. Na extremidade ultra-violeta do espectro (que é a luz negra de boite) encontramos outros participantes do drama humano. Exibindo incomum tolerância, encontramos lá exemplares do mundo gay masculino, comparecendo com 3 cidadãos, além de um transexual e um casal homoafetivo feminino assumido. Formas mais tradicionais de afeto ilícito, como o adultério, a relação consensual com menores e, mais picante, com bichos, se fazem representar nos casos contados em mal disfarçadas fofocas e risos.
O ponto formal do pecado é o forró. As sextas e aos sábados o local bomba, a partir das 23hrs, até o raiar de um sonolento sol. Vale refletir sobre a inscrição a porta do local, que ambiguamente dispõe: “menores de 16, 17 somente com ID”. Durante a função, bonitinhos e bonitinhas de todas as idades levam suas doces alegrias para o salão a céu aberto, em um ritual de trocas e ofertas, onde novos amores se formam e velhos conflitos se reformam. Afinal, pela manhã, passada a ressaca, serão todos os mesmos. Sinto que na alma contente desses compatriotas, a solitária rua central de Maracajaú é a única estrada poética que não leva a Roma. Não precisa.
Sentado em um travesso de coqueiro, eu olho a maré mexendo com o remanso formado pelas águas protegidas da barreira de corais, e coloco-me a pensar sobre o macro. Parece, para mim, tudo tão claro. São tão ordenados e esquemáticos os paralelos entre esta aldeia e nossa república, que em uma simples temporada de férias aqui eu seria capaz de escrever todas as respostas para o nosso progresso. Porém, para um encouraçado veterano da matriz, que já perdeu sua inocência há muitas luas atrás, emerge a constatação de que a soma do todo é maior do que a soma das partes. Para o bem ou para o mal. Com todas as marés que encherão e vazarão, aos meus pés, nesta praia, vejo o destino à frente como um trabalho de formiguinha, a ser feito crescente após minguante, aldeia após vila, alma por alma, geração a geração, para que um dia possamos garantir que a reforma da igreja ocorra com o menor sacrifício, o melhor resultado, nenhum desperdício e, sobretudo, sem prejuízos morais.
Para aqueles que se interessam pela doce sensação da inocência no micro, deixo as seguintes recomendações de filmes: “Local Hero” e “Saving Grace”, distribuídos nas locadoras como “Momento Inesquecivel” e “O Barato de Grace”.
Muito legal seu texto, Fernando. Fui atrás do que mais você tivesse escrito no Haja.
ResponderExcluirNo texto de hoje, essa história de "um trabalho de formiguinha, a ser feito crescente após minguante, aldeia após vila, alma por alma, geração a geração" mais parece descrição de uma sucessão de vidas - pra quem acredita em vidas passadas.
Do seu texto do início de julho, marquei isto:
"... o único aparelho que mediava o humano consigo mesmo, através da oferta artificial de imagens, como se fosse um buffet a quilo de identidades para consumo pessoal." Pesado, mas verdadeiro. Que coisa, né, a gente vive consumindo: imagens (como as da TV), músicas, comida, sexo, drogas (legais ou ilegais). Aí fica difícil apontar o dedo pra alguém e dizer: "Você é um viciado!"
Matias prezado, por gentileza do Tiago foi-me concedido esse valioso espaço para escrever. Fico grato que vc tenha me procurado no Haja, ainda que eu tenha tido apenas esses poucos posts. Estamos vivendo uma época dourada para os amadores. Armados com uma vasta munição de informação, alimentada pela internet, podemos tratar com mais desembaraço dos interesses que nos definem. Pela frente vêm tempos muito estimulantes...
ResponderExcluirTempos estimulantes... Talvez parecido com o que aconteceu quando a imprensa foi inventada na Europa.
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