sábado, 27 de fevereiro de 2010

CHEIO DE AGÁ

“Meus amigos sempre acertam ao achar que estou errado.
E eu sempre erro ao achar que eles estão certos.”
Frase meio besta, cheirando a truque, jogo de palavras, mas, convenhamos, dá o que pensar. E era nisso que Arthur Theodoro pensava ao entrar no elevador para acertar um emprego de contato publicitário de uma rádio AM de grande audiência e pouca remuneração.

O apelido do Arthur Theodoro era Cheio de Agá e se aplicava em todas as situações: além do nome, ele era bom de conversa. Crueldade paterna ou não, Arthur Theodoro era uma homenagem a um distante bisavô ou coisa no gênero e isso não o preocupava.
O fato é que ele estava ali, na frente de um cidadão estranho, cheio de pose, que falava como se aquela rádio fuleira tivesse mesmo tanta importância nos destinos da comunicação nacional. Concordou com tudo, disse as coisas certas e começou no mesmo dia a atender uma carteira de clientes que seria um suplício para qualquer ser humano, mesmo em desespero. Mas desespero era a última sensação que Cheio de Agá experimentava. Ao contrário, sentia alívio.

Explicando a situação: o Cheio estava com 27 anos, filho de boa família, bem educado, pai médico, mãe dona-de-casa-porém-atenta, estudou em bons colégios, formou-se em qualquer coisa só pra agradar e fugir da medicina (que odiava). Desde criança, o que ele queria mesmo era não fazer nada. Mas não julguem mal o rapaz. Não era malandragem, ele não era um vagabundo, era um observador. Seu sonho era ficar olhando a vida passar. Nenhuma ambição material, nenhuma preocupação com nada. Queria simplesmente fazer nada. Tinha conseguido seu intento até então. Enrola dali, ajeita daqui, ia levando. Só que o tempo passou, acabou a faculdade (de quê mesmo?) e foi ficando complicado. As cobranças começaram a chover de todos os lados.
Pai, mãe, namorada, os amigos:
-Pôxa cara, e aí?
Ele então explicava que não tinha “aí”, que era isso mesmo, que o bom era só ver, pensar, olhar, viver.
-Mas viver de quê, ô Cheiô?
-A família é rica, eu não dou muita despesa, arrumo um trocado com uns cachorrinhos que levo pra passear, vou vivendo...
-E a Marina?
-Vai bem, parece que está se formando em biologia.
-E daí, rapaz?
-Daí o quê?
-Família, filhos, carreira?
-Vocês são loucos!
-Pô, não vê seus irmãos (ele era o caçula), estão todos bem!
-Bom pra eles, eu estou bem também.

Claro, terapia imediata. Ele foi. Afinal, era mais uma coisa pra se ver. Sua tranqüilidade e clareza de objetivos levaram o terapeuta à loucura. Mas este disfarçou legal e o mandou para um neurologista. Os exames deram todos normais. Aí a coisa pegou de vez. Se não é doido, se os exames não acusam nada, então é safado e vagabundo mesmo! Doutor Otávio ameaçou por pra rua ao que Dona Nadir respondeu com maternal serenidade: “Por cima do meu cadáver.”
Como todas as mães, ela acreditava que era uma fase, que ia passar.
Frente a argumentos tão lógicos, Doutor Otávio ponderou que tinha mais o que fazer e deixou pra lá.
Dona Nadir passou a experimentar uma técnica nova que ela tinha lido na Marriclér que ensinava a agir subliminarmente, aparentando naturalidade para então enfocar os conceitos básicos de maneira holística. Ela não entendia bem essa coisa, mas achou lindo.
Os irmãos nunca se preocupavam. Afinal o Cheio não enchia ninguém, muito ao contrário era um bom papo, lia muito, era bem informado, tinha boas idéias que nunca colocava em prática. “Idéias são patrimônio da humanidade”, dizia ele, “quem quiser que faça bom proveito”.
A Marina estava atarefadíssima com trabalho, faculdade, procura do verdadeiro eu, iôga, dança do ventre e também achava que era uma fase, meio longa, mas apenas uma fase. Logo logo ele ia tomar rumo. Além do mais a família era rica, né? Os amigos também entraram na rotina. Com aquela filosofia peculiar às turmas de boteco, decretaram: foda-se.

Foi aí que o Cheio quase pirou. Simples: enquanto ele escondia seus objetivos, estava feliz, tinha um segredo, era diferente e ninguém sacava. Depois, quando suas idéias vieram à tona, havia uma constante batalha a ser vencida, haviam ideais a serem mantidos. Mas quando todos se acostumaram, ele ficou à deriva. A vida ficou sem graça.

Agora, ele sai de casa cedo, passa na rádio, conversa um pouco, sai pra rua, “dá um perdido” e fica o dia inteiro sem fazer nada. Os amigos dizem “Téquinfim hein, ô Cheio!”, Dona Nadir comprovou o sucesso da Marriclér, Doutor Otávio reparou que ele não está em casa o tempo todo e a Marina anda querendo marcar data.
E assim, Arthur Theodoro, o Cheio de Agá, pelo menos por enquanto, reencontrou a paz.

Um comentário:

  1. Isso é o que eu chamo de saber dar um perdido. Parece meu gatinho...

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