sábado, 5 de dezembro de 2009

TÁBACÔNA

(Em carioquês, a expressão “tá bacana” significa algo entre “-Não sei não, mas vida que segue...” e “-Tudo bem, não se fala mais nisso.”)

Ela falava assim, fazendo biquinho, -Tábacôna!

Típica representante da fauna (e flora) do Rio de Janeiro, Christina (assim, com agá complicativo mesmo, a mãe dela achava chique) misturava a agressividade intrínseca da malandragem carioca com a doçura de mulher bem resolvida, conhecedora e exímia administradora de seus dotes de sedução. Capaz de sacrificar seu lazer - e muito mais - para ajudar qualquer pessoa necessitada, era também capaz de incompreensíveis rasgos de avareza. Em resumo, um ser humano como qualquer outro, com o agravante de ser mulher: inexplicável, incoerente, eterna adolescente, enfim, uma delícia de criatura.

Advogada, boa situação financeira, beirando os quarenta, separada, natureba-pero-no-mucho (como manda o figurino), ia levando suas pauladas e dando outras tantas, conhecendo o mundo e seus habitantes, de forma leve e sem maiores preocupações. Sentia-se bem, as coisas aconteciam a seu redor exatamente da forma que ela determinava. Até que o destino deu-lhe uma pernada (ou “uma banda”, em carioquês).

O primeiro casamento não destruíra o efeito de anos e anos de lavagem cerebral que Sabrina, Julia e outros horrores no gênero haviam desenvolvido - um sonho inconfessável até diante do espelho: um dia, o príncipe iria chegar. Não um reles príncipe. Mas, Ô Príncipe! Aquele que traria sentido total à sua existência. Aquele que seria gentil, educado, companheiro, afável, bem humorado, dono de infinita paciência e compreensão, jeitoso para pequenos consertos domésticos, cozinheiro de mão cheia e, na cama, um monstro libidinoso! E ela não estava na caça. Fazia parte de sua estrutura a completa falta de planejamento para tudo: -Assim não crio expectativas e não me decepciono, dizia com um ar de superioridade que contrastava com sua inteligência.

Ronaldo, que atendia pelo suburbano codinome Rôni, fez tudo certo. Foi devagar, aplicando pequenos golpes sedutores como cartões espertinhos enviados nas manhãs seguintes a encontros gostosos, se mostrando sensível e atencioso, ou seja, utilizando toda a parafernália indispensável para uma conquista mais trabalhosa. Sim, porque hoje é preciso ter cada vez mais cuidados e atenções a inúmeros detalhes ao lidar com o sexo feminino - culpa da mídia... E Rôni sabia bem disso. Caprichava na aparência, escolhia os assuntos de modo a parecer sempre bem informado e atento às coisas de interesse dela, fazia o tipo rude-com-sensibilidade-a-ser-descoberta. O que provocava em Christina paroxismos de prazer. Dentro e fora da cama.

Rôni era chofer de táxi. Não dessa safra de profissionais liberais, que, por força do desemprego, estão encarando o nobre ofício de transportar a classe média. Era chofer de táxi porque foi o que lhe sobrou. Vagabundo, porém charmoso e inteligente, logo cedo descobriu sua vocação: viver às custas de senhorinhas carentes. Um requintado cafajeste.
Através de um amigo que trabalhava em uma administradora de cartões de crédito, Rôni levantava a ficha das madames a serem desbastadas de suas economias em troca de algumas semanas de paixão avassaladora. Depois de cercar a casa da Christina por algum tempo, finalmente ela embarcou no táxi. Daí pra frente, tudo seguiu o caminho normal. Dono de uma aguçada presença de espírito, ele fisgava sem dó nem piedade.

Christina tirava de letra a diferença de classe social. Ainda mais depois que lera, num desses famigerados cadernos femininos que se repetem nos jornais semana após semana, uma reportagem sobre mulheres psicólogas, arquitetas, etc, que viviam com seus rudes e maravilhosos pedreiros, jardineiros, etc. Dava até status. -Olha como estou adestrando o meu animal de estimação... E na cama, minina, nem te conto!

Levou o Rôni para meditação transcendental, iôga, ele começou a tomar florais para diminuir o stress do trânsito, já estava acertando quase todos os plurais e concordâncias. Avanço importante pois, para ele, até noventa e nove era no singular: -“É só trinta real, meu camarada!”
Foram assistir Pão e Tulipas e, depois de todas as explicações e interpretações da Chris, ele entendeu e gostou. Começou a freqüentar a rodinha de amigos dela e (contra seus princípios) até participou de um agoniante almoço familiar dominical.

Foi depois desse almoço. Era uma tarde chuvosa, dessas que praticamente empurram os amantes para a cama. Após um caprichadíssimo embate amoroso, cigarrinho na mão, a outra mão acariciando um seio, ele lançou a isca: um suspiro profundo e o olhar perdido no teto. O calhorda sabia tudo.
Em menos de um segundo, ela já estava de bruços, olho no olho: -O que está te preocupando, meu bem? -Nada não. -Pôxa, será que você não confia mais em mim? -Claro que eu confio. É que pintou uma oportunidade para trocar o carro e eu só tenho até terça-feira pra bater o martelo.
-Como assim? -Você sabe que estou precisando de um carro mais novo e surgiu essa oportunidade. Só que tenho que depositar até terça e o dinheiro que tenho aplicado só posso retirar no fim do mês... -E quanto é, meu bem? -Vinte e cinco. É um grande negócio, o carro vale trinta e cinco mas o sujeito está apertado. Bom, deixa pra lá. Vou dar um jeito. -Se você está precisando posso te emprestar até o fim do mês... -Que isso Chrisinha... Eu me viro. Além do mais, se eu não conseguir, outra oportunidade vai aparecer. Não preocupa não. -Deixa de ser bobo. Outra dessa não pinta tão cedo e você está mesmo precisando trocar esse carro. Amanhã eu deposito pra você.
Depositou.

E aí aconteceu o imponderável. Cheque compensado, dinheiro na conta, estratégia de sumiço armada, o Rôni vacilou. Pôxa, ela é tão legal! Pela primeira vez ele tinha sido gostado sem explicações ou necessidade de fingimento. Chris, ao contrário das outras, nunca havia escondido nada de ninguém. Ele era aceito pelos amigos e pela família - tudo bem que havia sempre os comentários e risadinhas que ele percebia, mas não o abalavam. O que estava abalando era a Chris.
Sumiu três dias. Na sexta-feira apareceu. -Tive que viajar. -Fiquei preocupada. Não faz mais assim. -Me desculpa, não faço mais não. Olha, toma pra você. -Quê isso? -Seu dinheiro. O cara melou o negócio...

Christina hoje é diretora jurídica de uma multinacional, Rôni largou o táxi, está estudando espanhol e virou “house-keeper”. Às vezes, nas madrugadas insones, lembra com uma ponta de saudades, as armações do passado. Aí, olha pra Chris dormindo a seu lado e suspira: -Tábacôna...

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