quarta-feira, 10 de março de 2010

“PASSEIO SOCRÁTICO” – FREI BETTO

O texto é antigo, mas qualidade não tem data de vencimento.

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir:- “Qual dos dois modelos produz felicidade?”

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
- “Não foi à aula?”
Ela respondeu: -“Não, tenho aula à tarde”.
Comemorei:-“Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde”.
- “Não”, retrucou ela, “tenho tanta coisa de manhã…”
- “Que tanta coisa?”, perguntei.
- “Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: – “Que pena, a Daniela não disse: “Tenho aula de meditação!”


Estamos construindo super-homens e supermulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados. Por isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! – Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: “Como estava o defunto?”. “Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!” Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais…


A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil – com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é “entretenimento”; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.

Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!”O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade – a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas…
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno…. Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald’s…


Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Estou apenas fazendo um passeio socrático.” Diante de seus olhares espantados, explico: Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”

Frei Betto é Carlos Alberto Libânio Christo, escritor e assessor de movimentos sociais, é autor de “Típicos Tipos” (A Girafa), prêmio Jabuti 2005, entre outros livros. Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004).

6 comentários:

  1. Pois é né, haja muito saco, eu gostei muito da comparação entre a idade média e hoje, o problema está nos extremos, não é mesmo? Querer ensinar tudo de uma vez é um problema, principalmente quando o assunto já foi dito varias vezes de vários modos e ainda não foi absorvido, creio que silenciar faz parte de ensinar tb, pelo menos funciona comigo. Quantas vezes eu ficava me matando em cima de algumas peças, aí resolvia largar 3 dias, quando eu pegava pra tocar ela saia quase como um milagre. O silêncio tb faz parte da aprendizagem. Mudar de assunto tb. Quanto a programas besterol, eu concordo, claro, mas tem o lado B tb, mas por respeito ao que eu li sobre o que Frei Betto escreveu, eu silencio e deixo a discussão pra outro dia.
    Descobri que saber é o primeiro passo, mudar já é uma outra coisa, demorada, principalmente pra pessoas lentas. É duro alguém dizer pra gente o tempo todo "olha, tá pegando fogo, tá pegando fogo" e vc não ter como apagar o incendio. Imagine vc o desepero por quem não pode fazer nada, quanto outro maluco grita no seu ouvido "você não vai fazer nada? Vc não vai fazer nada?" Imagina?
    Além de ter de arcar com o desespero de ver o fogo devorar tudo, ainda tem que arcar com as consequencias de ser pressionado a resolver uma coisa que não tem como resolver. Nunca precisei tanto da figura de Hamlet. Ainda bem que ela existe, pra que eu não me sinta tão sem referencia no mundo. Deixa o fogo devorar tudo. Que sobre pelo menos a mente sã pra concertar tudo depois, pior é não sobrar nada.
    Silenciar é preciso.

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  2. Como são irônicas as coisas da vida... a pessoa escreve o maior comentário que eu já pessoalmente publicado num blog, para terminar com a frase "Silenciar é preciso."

    Uau. Já imaginou se falar fosse preciso?

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  3. O Anônimo que comentou o comentário gigante11 de março de 2010 às 14:36

    Foi só um comentário. Não precisa se desculpar.

    Haja!

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  4. Anônimos!
    Inspirem-se nos monges tibetanos...

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  5. Faz sentido! Porém, atualmente, enquanto os shopping centers e as igrejas evangélicas ficam abertas o dia todo, as catedrais estão fechadas, para evitar assaltos...

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