Segue
texto primoroso do Tim Vickery - colunista da BBC Brasil e formado em História
e Política pela Universidade de Warwick.
Minha primeira
geladeira
e por que o Brasil de hoje
lembra a Inglaterra dos anos 60
Acho
que nasci com alguma parte virada para a lua. Chegar ao mundo na Inglaterra em
1965 foi um golpe e tanto de sorte.
Que momento! The Rolling Stones cantavam I
Can’t Get no Satisfaction, mas a minha trilha sonora estava mais para uma música
do The Who, Anyway, Anyhow, Anywhere.
Na
minha infância, nossa família nunca teve carro ou telefone, e lembro a vida sem
geladeira, televisão ou máquina de lavar.
Mas eram apenas limitações, e não o
medo e a pobreza que marcaram o início da vida dos meus pais.
Tive
saúde e escolas dignas e de graça, um bairro novo e verde nos arredores de
Londres, um apartamento com aluguel a preço popular – tudo fornecido pelo
Estado. E tive oportunidades inéditas. Fui o primeiro da minha família a fazer
faculdade, uma possibilidade além dos horizontes de gerações anteriores. E não
era de graça. Melhor ainda, o Estado me bancava.
Olhando
para trás, fica fácil identificar esse período como uma época de ouro.
O
curioso é que, quando lemos os jornais dessa época, a impressão é outra. Crise
aqui, crise lá, turbulência econômica, política e de relações exteriores.
Talvez isso revele um pouco a natureza do jornalismo, sempre procurando
mazelas. É preciso dar um passo para trás das manchetes para ganhar
perspectiva.
Será
que, em parte, isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Não
tenho dúvidas de que o país é hoje melhor do que quando cheguei aqui, 21 anos
atrás. A estabilidade relativa da moeda, o acesso ao crédito, a ampliação das
oportunidades e as manchetes de crise – tudo me faz lembrar um pouco da
Inglaterra da minha infância.
Por
lá, a arquitetura das novas oportunidades foi construída pelo governo do
Partido Trabalhista nos anos depois da Segunda Guerra (1945-55). E o Partido
Conservador governou nos primeiros anos da expansão do consumo popular
(1955-64). Eles contavam com um primeiro-ministro hábil e carismático, Harold
Macmillan, que, em 1957, inventou a frase emblemática da época: "nunca foi
tão bom para você" ("you’ve never had it so good", em inglês).
É
a versão britânica do "nunca antes na história desse país".
Impressionante, por sinal, como o discurso de Macmillan trazia quase as mesmas
palavras, comemorando um "estado de prosperidade como nunca tivemos na
história deste país" ("a state of prosperity such as we have never
had in the history of this country", em inglês).
Macmillan,
"Supermac" na mídia, era inteligente o suficiente para saber que uma
ação gera uma reação. Sentia na pele que setores da classe média, base de apoio
principal de seu partido, ficaram incomodados com a ascensão popular.
Em
1958, em meio a greves e negociações com os sindicatos, notou "a raiva da
classe média" e temeu uma "luta de classes". Quatro anos mais
tarde, com o seu partido indo mal nas pesquisas, ele interpretou o desempenho
como resultado da "revolta da classe média e da classe média baixa",
que se ressentiam da intensa melhora das condições de vida dos mais pobres ou
da chamada "classe trabalhadora" ("working class", em
inglês) na Inglaterra.
Em
outras palavras, parte da crise política que ele enfrentava foi vista como um
protesto contra o próprio progresso que o país tinha alcançado entre os mais
pobres.
Mais
uma vez, eu faço a pergunta – será que isso também se aplica ao Brasil de 2015?
Alguns
anos atrás, encontrei um conterrâneo em uma pousada no litoral carioca. Ele, já
senhor de idade, trabalhava como corretor da bolsa de valores. Me contou que
saiu da Inglaterra no início da década de 70, revoltado porque a classe
operária estava ganhando demais.
No
Brasil semifeudal, achou o seu paraíso. Cortei a conversa, com vontade de
vomitar. Como ele podia achar que suas atividades valessem mais do que as de
trabalhadores em setores menos "nobres"? Me despedi do elemento com a
mesquinha esperança de que um assalto pudesse mudar sua maneira de pensar a
distribuição de renda.
Mais
tarde, de cabeça fria, tentei entender. Ele crescera em uma ordem social que
estava sendo ameaçada, e fugiu para um lugar onde as suas ultrapassadas
certezas continuavam intactas.
Agora,
não preciso nem fazer a pergunta. Posso fazer uma afirmação.
Essa história se
aplica perfeitamente ao Brasil de 2015. Tem muita gente por aqui com
sentimentos parecidos. No fim das contas, estamos falando de uma sociedade com
uma noção muito enraizada de hierarquia, onde, de uma maneira ainda leve e
superficial, a ordem social está passando por transformações. Óbvio que isso
vai gerar uma reação.
No
cenário atual, sobram motivos para protestar. Um Estado ineficiente, um modelo
econômico míope sofrendo desgaste, burocracia insana, corrupção generalizada,
incentivada por um sistema político onde governabilidade se negocia.
A
revolta contra tudo isso se sente na onda de protestos.
Mas tem um outro fator
muito mais nocivo que inegavelmente também faz parte dos protestos: uma reação
contra o progresso popular.
Há vozes estridentes incomodadas com o fato de que,
agora, tem que dividir certos espaços (aeroportos, faculdades) com pessoas de
origem mais humilde.
Firme e forte é a mentalidade do: "de que adianta ir
a Paris para cruzar com o meu porteiro".
Harold
Macmillan, décadas atrás, teve que administrar o mesmo sentimento elitista de
seus seguidores. Mas, apesar das manchetes alarmistas da época, foi mais fácil
para ele. Há mais riscos e volatilidade neste lado do Atlântico. Uma crise
prolongada ameaça, inclusive, anular algumas das conquistas dos últimos anos.
Consumo
não é tudo, mas tem seu valor.
Sei por experiência própria que a
primeira geladeira a gente nunca esquece.